Há uns meses atrás, me descobri bastante preconceituosa. E o preconceito que eu desfilava por aí é um dos mais invisíveis: a gordofobia. Sim, existe uma palavra para chamar a discriminação com pessoas gordas e ela é a “gordofobia”, prazer.
Eu vivia pensando em como aquela jogadora de vôlei podia ser gorda se ela treina 8 horas por dia. Me questionava como uma professora vegana e naturena podia ser obesa. Fiz piadas com o tio que colocou um balão no estômago, com a atriz que não emagreceu mais depois da maternidade, com as amigas que não cabem mais na calça 38. E me envergonho muito disso.
Mas acredito que o primeiro passo pra gente deixar de ser preconceituoso é o mais difícil: reconhecer! Ninguém se vê enquanto um gordofóbico, já reparou?
E desde que comecei a estudar o tema e ficar atenta, tenho questionado comportamentos de pessoas próximas. O que ouço é sempre o mesmo, o mesmo que eu repeti a vida inteira: “só estou preocupada com a saúde da pessoa“.
Não estamos. E mesmo que estivéssemos, cada um que cuide da sua vida, né? A gente justifica muitos preconceitos por conta de um possível “cuidado”, que na verdade significa se meter na vida dos outros e achar, do alto da nossa arrogância, que sabemos o que é melhor pra cada um.
A primeira coisa que aprendi ao me debruçar sobre esse tema foi: magreza não é sinônimo de saúde e gordura não é sinônimo de doença. E não sou que falo isso, não, é a ciência. Como esse assunto é delicado e polêmico, resolvi chamar os universitários, mais precisamente, a minha nutricionista, que pesquisou esse assunto.
Além de ser terapeuta ayurveda, a Jacobina Cantisani é nutricionista pela Universidade Federal de Santa Catarina e fez o seu TCC sobre a gordofobia. Ela pesquisou como os equipamentos de saúde reproduzem a gordofobia, assim como a própria formação em Nutrição. Se quiser ter acesso a um artigo que ela escreveu sobre o tema, clica aqui.
Espero que a entrevista te ajude a repensar várias atitudes e a lutar contra esse tipo de opressão.
Ah! Também recomendo o episódio do podcast Mamilos sobre o assunto. Clica aqui pra ouvir.
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Sabe o que também ajuda as pessoas gordas a se aceitarem? Todo mundo parar de achar que gordura é anormal, feio ou doença! |
Pra quem não tá familiarizado sobre o termo, como a gente pode explicar o que é gordofobia?
A gordofobia é uma opressão, um tratamento estigmatizante, desigual e hostil para com as pessoas gordas e seus corpos, reforçando estereótipos e impondo desvalorização, constrangimento e segregação. O estigma reduz a pessoa gorda à sua característica corporal ou comportamental vista como anormal e a discrimina por isso. Dessa forma, se estabelece um controle coletivo sobre seu corpo, a partir da crença de que o aumento de peso é reflexo de qualidades morais do indivíduo, principalmente o descontrole. É importante ressaltar que o estigma não se trata apenas de uma crítica individual, ele se estabelece por meio de uma série de interações que desvalorizam a pessoa gorda e a transformam em culpada por sua desvalorização.
Quais são as consequências mais evidentes na vida de uma pessoa vítima de gordofobia?
A exclusão e opressão afetam diretamente a autoestima, levando a consequências como o isolamento social e doenças induzidas pelo estresse (depressão, ansiedade, tendência ao suicídio). O sentimento de fracasso por não corresponder ao padrão tem efeito direto sobre a integridade psicológica do indivíduo. As relações sociais e a relação com o próprio corpo são significativamente afetadas pela busca do ideal estético e de saúde socialmente aceitos, aumentando a insatisfação corporal e a probabilidade de comportamentos alimentares prejudiciais (dietas da moda, transtornos alimentares). Especificamente na área da saúde, encontramos com frequência o afastamento da pessoa gorda dos serviços, na tentativa de se ver livre do constrangimento, negligência e violência recorrentes, muitas vezes exercidas por profissionais que, supostamente, estariam ali para ajudá-la fornecendo suporte terapêutico para sua condição de sofrimento.
Por que a pessoa gorda é vista como “anormal”?
Os critérios de normalidade são construídos a partir de uma certa visão de mundo daqueles que “fazem ciência”. Em determinado momento da nossa história, quando a escassez cedeu lugar à abundância alimentar, o corpo magro passou a ser visto como algo a ser alcançado, um sinônimo de status, autocontrole e determinação, numa falsa crença de que ele só pode ser fruto de alimentação e práticas “saudáveis”. Em contrapartida, o corpo gordo passa a ser visto como o oposto disso, como sinônimo de algo “não saudável”, do ponto de vista científico, que é fruto de um “comportamento desviante”, aí já entrando no campo da moralidade.
É muito comum ouvirmos “não, não sou gordofóbico, eu só estou preocupado com a saúde da pessoa”. Como podemos desfazer essa confusão?
Mascarar gordofobia com o discurso de “preocupação com a saúde” é algo bem recorrente, mas tratar alguém de forma discriminatória, invasiva, hostil e desrespeitosa não é nem de longe uma maneira de promover saúde. E, ao contrário do que se acredita, o constrangimento não funciona como incentivo ao emagrecimento e a adoção de práticas saudáveis. A primeira crença que deve ser desfeita é a de que uma pessoa gorda é necessariamente “não saudável”. Esta forma de pensar é devido a uma maneira simplista e binária de entender o que é saúde, que coloca como não saudável tudo aquilo que foge do que seria a “norma” cientificamente estabelecida sob uma perspectiva biológica. No caso da pessoa gorda, essa norma “não cumprida” é o chamado Índice de Massa Corporal (IMC).
Muito amor por essa ilustração da @isadoranãoentendenada. A reprodução da imagem foi autorizada por ela! |
De fato, pessoas gordas podem ser saudáveis?
Totalmente. Inclusive existem estudos recentes que trazem essa discussão. Um estudo publicado em 2012 (MATHESON, KING, EVERETT) determinou a associação entre hábitos de vida saudáveis (comer cinco ou mais frutas e vegetais diariamente, fazer exercícios regularmente, consumir álcool com moderação e não fumar) e mortalidade em uma grande amostra populacional (mais de 11 mil indivíduos acompanhados por cerca de 14 anos), estratificada por IMC, e concluiu que a adoção de hábitos saudáveis diminui o risco de mortalidade independente do IMC inicial.
Em 2016 outro estudo (TOMIYAMA et al) utilizando os dados de pressão arterial, triglicerídeos, colesterol, glicose, resistência à insulina e proteína C-reativa, analisou as porcentagens de indivíduos metabolicamente saudáveis versus insalubres, estratificadas por IMC: mais de 30% de pessoas com peso normal estavam metabolicamente insalubres e quase metade dos indivíduos com sobrepeso + 29% dos indivíduos obesos grau I + 16% de indivíduos com obesidade II e III estavam metabolicamente saudáveis, concluindo assim que pessoas podem ser saudáveis não importando o seu IMC.
O IMC isoladamente não é um indicador de saúde confiável quando se trata de indivíduos; ele é um indicador populacional. E, ainda assim, trata-se de um indicador populacional concebido a partir de uma perspectiva limitada de saúde.
E existe relação entre magreza e saúde?
O que existe é uma valorização moral do corpo magro, visto como resultado de “força, foco e fé”. Uma ideia equivocada de que ao ser magra a pessoa já cumpriu um pré-requisito para ser saudável, mesmo que ela não tenha feito absolutamente nada para ter aquele corpo e tenha hábitos completamente contrários à manutenção da saúde.Vivemos um momento em que quase ninguém supõe que uma pessoa com baixo peso (IMC inferior a 17) pode estar doente, “pode ser apenas uma característica pessoal”. Porém, o mesmo pensamento não ocorre com pessoas com IMC acima de 25. De fato, tanto a pessoa magra quanto a pessoa gorda podem estar saudáveis ou não, isso sem entrar na discussão do que deve ser entendido como saúde, me refiro aqui apenas do ponto de vista biológico/metabólico.
Uma pessoa pode ser obesa e desnutrida ao mesmo tempo?
Apesar de ser contraintuitivo para muitas pessoas, fome e excesso de peso não são opostos, mas estão relacionados. Especialmente se considerarmos a realidade do Brasil, a insegurança alimentar determinada pela pobreza pode induzir à escolha de alimentos com alta densidade calórica, porém com baixa qualidade nutricional, relacionados ao baixo custo desse tipo de alimentos, que geralmente são os industrializados ultraprocessados.
Qual a diferença entre gordofobia e lipofobia?
A gordofobia é a discriminação das pessoas gordas e seus corpos, associando-as ao descontrole, desleixo, preguiça, doença, inadequação. Por outro lado, a lipofobia é a aversão ou medo da própria pessoa em se tornar gorda.
Na sua formação como nutricionista, houve espaço para discussão sobre esse tema? De que forma a gordofobia é tratada no curso de nutrição?
Nos últimos cinco anos o tema tem aparecido com um pouco mais de frequência, em espaços extra classe: semanas acadêmicas, seminários, aulas especiais – mais por uma busca das/os próprias/os estudantes. Na grade curricular ainda não há espaço para discussão do tema, e em diversos momentos nos vemos às voltas com o discurso gordofóbico disfarçado de preocupação com a saúde, onde a “ciência” cede lugar aos preconceitos de ordem moral.
No seu trabalho de conclusão de curso, você apontou que os profissionais da área da saúde, no geral, têm uma postura bastante estigmatizante e gordofóbica. Você pode explicar como isso acontece?
Embora tenhamos (eu e a Barbara Leone, minha dupla no trabalho) observado mais atentamente o espaço em que estávamos inseridas – curso de graduação em Nutrição da UFSC – há algum tempo que não são mais segredo as atitudes gordofóbicas entre profissionais de saúde das mais diversas áreas. Por exemplo, sob a hashtag #gordofobiamedica podemos ter acesso a relatos que podem ser subdivididos em algumas categorias:
Estigma, reduzindo a pessoa gorda a suas características físicas e comportamentais consideradas inapropriadas e rotulando-a como preguiçosa, descontrolada, desleixada, indisciplinada, gulosa, etc.
Constrangimento por meio de comentário inapropriados e desrespeitosos à pessoa gorda. Os profissionais sentem-se no direito de supor e opinar sobre sua vida e seus hábitos, de maneira invasiva.
Tudo se resume ao IMC, qualquer problema de saúde é reduzido ao peso corporal, ou seja, se a pessoa chega com um dedo quebrado, refluxo ou ansiedade, a causa sempre será o alto índice de massa corporal. Negligência no diagnóstico em favor do IMC. Um dos casos que mais me impactou foi o de uma moça que teve um câncer diagnosticado tardiamente pela indiferença aos sintomas em detrimento do seu peso.
Como deveria ser um tratamento respeitoso e esperado para pessoas gordas nos equipamentos de saúde (postos, hospitais, clínicas)?
Um dos grandes limites do combate à gordofobia é a negação da existência da opressão, impedindo a realização da autocrítica por parte dos profissionais e, com isso, agravando a persistência da reprodução do preconceito. Um bom começo seria sair do lugar de julgamento e rejeição e adotar uma postura mais empática e acolhedora, buscando entender e atender os reais motivos que levaram àquela pessoa a buscar o serviço que podem, ou não, estar relacionados com a insatisfação corporal e um (suposto) interesse em perder peso.
Contatos da Jacobina Cantisani
Telefone: (48) 99673-9631.
Instagram: @jacobina.nutri.ayurveda
Ah! Esse post é patrocinado pelos assinantes do Catarse, que contribuem todo mês para que o Comida Saudável pra Todos continue firme e forte! Se você também quiser dar uma força, clica aqui.
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Uma resposta
Aí MDS, eu amei muito esse POST *-*