Minha cozinha tem fases. Já passei pela febre de comida indiana, onde a prateleira de temperos e ervas aqui de casa ficava mais abarrotada do que a despensa e a geladeira juntas. Logo depois veio a fase minimalista, quando eu comprava quase nada e comia basicamente os mesmos pratos todos os dias. Um tédio. Isso que nem vou citar a fase gourmet, que já venci há anos, e a das dietas. Mas, a nova tendência que anda ditando as regras na minha cozinha é comida com história.
Não consigo mais comer nada sem pensar se alguém já comeu antes. Só que aí surgiu um problema chamado tempo, porque estou me afundando em pesquisa e leitura sobre a história dos ingredientes e da gastronomia. E se eu só precisava trabalhar, ter um blog, fazer os trabalhos da faculdade, limpar a casa, cuidar dos gatos, preparar refeições, etc, agora eu arrumei mais uma tarefa pra lista. Parece que tô fazendo drama, mas não. É um tempo gasto com prazer. A comida fica com outro gosto, sabe? Recomendo que você também embarque nessa.
E foi isso que aconteceu com o manjar de coco. Estive em Fortaleza na semana passada pro casamento de um amigo que mora na região e acabei provando um manjar num restaurante vegano maravilhoso chamado Mandir. Fica no bairro Benfica e serve um prato super caprichado por R$ 17. Provei o manjar deles, que levava uma calda de manga com maracujá. De uma gostosura do nível de comer chorando, sabe?
Voltei pra casa enlouquecida pra testar e já usar a receita como sobremesa na ceia de natal da família. Esse é o meu primeiro natal vegano. Até ano passado, eu comia a maionese da Tia Nazir, a torta de palmito da minha mãe, a farofa do Tio Nei e as 90 sobremesas atochadas em leite condensado da Tia Nádia. Agora, tenho negociado algumas adaptações nas receitas da família, mas faltava uma opção de sobremesa.
Só que antes de preparar o manjar, comecei a pesquisar sua história. As primeiras notícias que temos da existência do manjar são do século XVI, em Portugal e na França. Mas como tudo na história da humanidade, não há um consenso sobre isso. Há registros de que o prato já existia na Índia e em alguns países do Oriente Médio. Essa teoria faz algum sentido pelos ingredientes, já que a receita do manjar original levava leite de amêndoas, açúcar e pó de arroz pra engrossar. A calda (pasmem!) levava frango desfiado. Ou seja, inacreditavelmente o manjar surgiu no mundo como uma comida salgada. E foi assim que ele chegou ao Brasil, como diz o livro O cozinheiro imperial, de 1841.
O tempo foi passando e o mundo todo foi adaptando a receita. Na Itália, a galera acrescentou gelatina e deu o nome de Pannacotta. Os ingleses substituíram o pó de arroz pelo amido de milho, mais fácil de encontrar lá, e todo mundo entrou na deles. E como nós, brasileiros, somos incríveis e nossa comida costuma deixar todo mundo no chinelo, tivemos a brilhante ideia de fazer com leite de coco. Na verdade, acho que não era uma opção, né? Leite de vaca era só pros ricos e amêndoas nem se tinha notícia aqui nessa época.
Resumindo: o manjar de coco é uma criação brasileira, amados. Mais precisamente dos negros escravizados na Bahia. E agradeço imensamente por terem excluído o frango da receita. Este causo é citado no livro Açúcar, do Gilberto Freyre, inclusive. A obra fala da a forte influência africana na cozinha brasileira e o manjar é um desses exemplos.
Se não é a coisa mais linda do mundo, é a segunda mais linda! hahahaa |
Pois bem. História contada, vamos partir pra receita. Tô até agora passada com o quanto é fácil, rápido e barato. E não me conformo de não ter investido nessa sobremesa antes. Só tem um problema: parar de comer. Aqui em casa testei em taças e comi duas de uma vez no primeiro dia e mais duas no segundo, que é hoje. Mas, defendo sempre que tenhamos uma relação saudável com a comida e não recomendo que ninguém fique assim enlouquecido como eu. Em geral, costumo ser bem comedida com doces. Acho que foi a emoção mesmo porque é tão bom, mas tão bom que arrisco dizer ser uma das melhores sobremesas que já fiz na vida.
Ah! Alguns países não comem o manjar com calda, apenas com canela ou cacau polvilhado, como é o caso de El Salvador. Nunca fiz, mas achei interessante pra testar um dia.
Última informação: o preço baixo da receita no meu caso se deve ao fato de que as amoras foram doadas pela vizinha, que trouxe da casa da mãe dela. Pensei em ignorar esse fato e fazer com alguma fruta comprada, pro preço ser mais próximo de todo mundo. Mas não. Acho legal incentivar esse troca a troca de quitutes. Faça uma rede, troque com os vizinhos, construa pontes alimentícias. 🙂 Mais revolução que isso não há!
Vamos lá.
Eu fiz várias versões. Essas em forminhas e em taças também, que não corre o risco de dar ruim na hora de desinformar. |
Ingredientes pro manjar – rende 6 porções individuais
4 xícaras de leite de coco*
4 colheres de sopa de amido de milho (maizena)
1/2 xícara de açúcar demerara
*Observação: Se for fazer com leite de coco caseiro, faça mais grosso, ok? Ele tem que ser bem encorpado. Recomendo fazer na proporção de 2 xícaras de coco pra 4 xícaras de água, tá?
Observação 2: Eu não fiz com coco ralado, mas é uma opção também. Pode acrescentar 2 colheres de coco na panela, junto com os outros ingredientes.
Como eu fiz
Numa tigela, dissolvi 1 xícara de leite de coco com as 4 colheres de sopa de amido de milho. Dessa forma, tem menos chances de empelotar o leite. Se as bolinhas do amido não dissolverem bem, passe a mistura numa peneira direto na panela, espremendo bem pra dissolver tudo. Na panela, misturar todos os ingredientes e mexer até engrossar, atingir a textura de creme. Aí é só despejar esse líquido em potinhos untados com óleo, taças ou numa assadeira de pudim (também untada com óleo). Coloque na geladeira por, pelo menos, 4 horas. Se for levar para uma festa e o manjar precisar ficar exposto por um tempo na mesa, recomendo colocar no congelador antes, por 30 minutos, pra ele ficar mais firme e aguentar mais tempo.
Ingredientes da calda de amoras
2 xícaras de amoras frescas
1/3 de xícara de açúcar* demerara
3/4 de xícara de água
1 colher de sopa de cachaça
1/2 colher de sopa de limão espremido
*Observação: A quantidade de açúcar da calda varia de acordo com o seu gosto e com a fruta que escolher. As amoras não estavam tão doces, então coloquei um pouco mais de açúcar. Se fizesse com uma manga bem madura, usaria menos açúcar ainda.
Calda de ameixas – opção 2
1 xícara de ameixa seca ou em calda sem caroço
1/3 de xícara de açúcar demerara
3/4 de xícara de água
1 colher de sopa de vinho tinto
1 canela em pau
2 cravos
Calda de maracujá – opção 3
1 xícara de polpa de maracujá (ou 1/2 xícara de maracujá e 1/2 de manga)
1/3 de xícara de açúcar demerara
3/4 de xícara de água
1 colher de cachaça
1 tiquinho de gengibre ralado
Como eu fiz
Numa cumbuca, espremi as amoras com a mão. Só precisa fazer isso se quiser. Com maracujá e ameixa não precisa. Numa panela, coloquei a água e o açúcar e mexi até engrossar um pouco, quase em ponto de caramelo. Acrescentei o restante dos ingredientes e mexi até ficar uma calda encorpada, por cerca de 8 ou 10 minutos. Pronto. Agora é só colocar numa tigela e levar à geladeira pra esfriar. Recomendo despejar a calda sob o manjar apenas na hora de servir.
Ah! Eu não queria dizer, mas tenho certeza que o povo do Norte do Brasil vai querer jogar na nossa cara a ideia de fazer o manjar com calda de cupuaçu. Podem fazer, mas não me contem, tá? Não sei se meu coração aguenta! 🙂
12 Responses
Oi Ju!!
Obrigada pela receita!! Tô morrendo de vontade de fazer…
Esse leite de Coco é aquele de garrifinha?? O mesmo que a gente usa na moqueca??
Beijos …obrigada!!
Sim! Mas aí a receita vai encarecer! A versão do leite de coco caseiro sai BEM mais barato! Beijos
Que história louca desse manjar! Amo demais essa sobremesa e já fiz com Agar agar no lugar do amido.. vou testar a tua receita 😊 obrigadaaa
Oi Ju!!
Essa receita já ta na minha listinha de sobremesas para o Natal, quero tirar o leite condensado do trono de rei dos docinhos gostosos kkkkkk. Mas não acho amido de milho não transgenico e realmente nao queria financiar esse tipo de coisa. Na procura por outras opcoes, encontrei fecula de batata e mandioca, e araruta. Queria saver qual funcionaria melhor.
Obrigada desde ja!
Beijos,
Giu
Passei o Natal pensando nessa tua mensagem, acredita? A função deles é bem semelhante, mas preciso testar aqui! Se fizer, me avisa!!!
Olá Ju, posso substituir o amido de milho por algum espessante mais low carb? Sou diabética.
Eu amo todas as suas receitas! Parabéns pelo trabalho! Guardando essa para o fim de semana !
Não conheço nenhum espessante low carb, amada.
Aeeeeee!!!!!!!!!
Geralmente, quando estou lendo receitas eu corro logo para a parte principal. Mas seus textos me fazem ter vontade de ler. Aqui você dá bem mais do que a receita. Dá história, cultura, e amor em forma de comida. Obrigada, Ju!
Eu não consigo parar de comer o manjar que eu fiz! Tudo bem que ficou quase uma cocada de tanto coco que eu coloquei das sobras do leite de coco que eu congelo mas acho que deixou mais gostoso! Obrigada pelas suas receitas e seu cuidado com o estudo e com o blog! Já fiz várias receitas 🧡 viu testar com menos coco rsrs
Delicioso! Trabalho com curso de confeitaria saudável e esta tradicional sobremesa é boa demais!