Como eu virei vegana

Já faz 1 ano e meio que entrei pro grupo do povo que responde: “nem carne, nem peixe, nem ovo, nem leite, nem mel, nem couro, nem afins”. Mas demorei a escrever sobre essa decisão aqui porque eu achava que precisava de mais segurança, ter lido mais livros pra não falar nenhuma besteira, ou fazer uma imensa, completa e deslumbrante explicação do que é “especismo”. 
Até que criei vergonha na cara e entendi que esse dia talvez jamais chegue. Simplesmente porque as coisas foram muito simples pra mim. E acho válido contar esse processo porque muita gente acha o veganismo “difícil”, coisa de outro mundo, algo que exige um empenho gigantesco. 
Eu também achava isso, tá? Foi um dos motivos de ter me enrolado por tanto tempo. Mas, ao contrário de muita gente, eu fiz o caminho inverso, não comecei pela comida. Roupa, bolsa e sapato de couro eu sempre achei cafona mesmo, além de caro.
No geral, ao longo dos meus 6 anos de ovolactovegetarianismo já fui deixando de comprar tudo que era testado em animais. Aliás, acho que essa é a coisa mais fácil de fazer o ser humano se sensibilizar. Alguém, de fato, acha aceitável a ideia de encher coelhos engaiolados de alergias bizarras para testar um batom, por exemplo? Acho que não. O ser humano é cheio das serumanices, sabemos. Mas tendo a achar que ainda nos resta o mínimo de sensibilidade para alguns questões. E os testes em animais costumam causar mais impacto nas pessoas do que a indústria dos animais de corte pra alimentação, né?
Comigo foi assim. 
Lugar de vegano é na feira, não no freezer de 
hambúrgueres ultraprocessados do supermercado.
                             
Vamos à parte de passar vergonha então. Não tenho vontade de dar tapas nas pessoas e gritar “acorda!” quando falam que existe leite de vaquinhas felizes (e o mesmo pros ovos das galinhas) porque eu mesma fui uma dessas. Pra você entender o nível da minha cara de pau, eu até comia ostra raramente quando me dizia ovolactovegetariana porque moluscos parecem plantas! hahaha #vergonhadefine.
Eu repeti por anos o discurso de que bastava dar condições melhores pros animais e pronto. Bora comer o nosso macarrão cheio de queijo ralado em paz! Mesmo sendo adulta, eu também jamais tinha parado pra pensar em como funciona o processo de fabricação do leite e seus derivados. Nunca passou pela minha cabeça que não era algo natural, que a vaca era engravidada à força e depois não podia destinar todo o seu leite pra alimentar o filhote, que era separado dela inclusive. Interessante esse negócio de um ser não ter o direito reprodutivo sobre o próprio corpo, né? Você já ouviu isso em algum lugar? Eu já! E aí tá uma das conexões que a gente faz entre feminismo e veganismo.

Enfim, eu nunca entendi que havia um caminho a ser percorrido e que podia ir além. Sempre me achei o maior exemplo de coerência e ativismo da humanidade por não comer picanha nem usar sabão em pó testado em animais. E as referências que eu tinha de gente vegana só pioravam isso. Eu demoreeeeeei até encontrar as Sandras do mundo. Só conhecia as moças loiras que passam férias em retiros veganos em Bali ou aquele povo gratiluz-do-bem-que-cura que ama os animais, mas diz que bandido bom é bandido morto. 
Quando eu comecei a encontrar pessoas legais e vi que o veganismo tava mais próximo de mim do que eu imaginava e era um negócio possível, entrei naquela onda de questionamentos. Do tipo:
1. tá, mas a galinha não sofre pra colocar o ovo.
2. tá, mas posso ser vegana e ter composteira com minhocas?
3. vou poder matar as baratas que surgem lá em casa? 
4. se eu for na casa de uma pessoa super simples, como vou recusar o pouco de comida que ela pode me oferecer?
Se o veganismo é uma luta contra exploração, conectada a outras,
o nosso lugar é do lado da luta pela agroecologia.

                       

Quando eu cheguei nesse ponto é que iniciei os estudos, de fato. Comecei com artigos de blogs, como da Sandra, da Thallita Xavier. Vi uns vídeos da Sabrina Fernandes sobre a relação entre o veganismo e agronegócio, etc. Eu já era a louca que queria colocar fogo nos ruralistas, mas não entendia que a indústria do leite, por exemplo, também tá ali juntinha e amarradinha com a pecuária. 
Aí a Sandra veio para uma série de palestras pelo Brasil e ficou na minha casa. Até hoje me lembro daquele mini ser com sotaque potiguar e sua pequena mala passando pela minha porta e me abraçando como se a gente se conhecesse há décadas. Se você não conhece a Sandra pessoalmente, vou tentar transmitir a sensação de tê-la por perto: é como se um furacão te sacudisse, mas de forma afetuosa! Sério! Ela me disse 2 coisas que nunca esqueci e que me fizeram abraçar o veganismo na mesma hora. 
Coisa 1 que aprendi com Sandra: O maior inimigo do veganismo hoje é o agronegócio, principalmente no Brasil. E aqui eu entendo o agronegócio como um dos filhotes do sistema capitalista, tá? Não existe outra coisa que faça tantos animais sofrerem quanto essa mega indústria voltada à criação de animais, principalmente pra exportação, e de produção de grãos pra virar ração pra alimentar esses animais. Depois eu fui mergulhar no assunto e percebi que a gente não tá defendendo apenas os bichos quando queremos acabar com o agro. A gente quer libertar os trabalhadores explorados, já que a pecuária lidera os índices de trabalho análogo à escravidão, a gente quer libertar as florestas, proteger os rios, evitar novos genocídios indígenas, distribuir de forma justa as terras desse país. 
Coisa 2 que aprendi com a Sandra: Ela também me ensinou que é arrogância nossa achar que outras pessoas não vão entender o fato de sermos veganas, principalmente as mais simples. E, caso a gente explique com humildade, respeito, e elas não compreenderem, o problema já não é mais nosso. Mas isso não quer dizer que a gente saia com um adesivo na testa e anunciando pra deus e o mundo que somos veganas, tá? Pelo contrário, tem muito lugar que vou que nem falo nada. A gente tem que ter essa sensibilidade também, de sentir quando cabe conversar sobre ou não. E tem vezes que tô de saco cheio ou com preguiça e se alguém pergunta porque não comi isso e aquilo eu invento que tô fazendo um tratamento espiritual! hahahaha É a melhor desculpa do mundo! Todo mundo respeita, ninguém questiona.

Veganismo vai além da libertação dos animais! A gente quer
acabar com a exploração dos trabalhadores e do meio ambiente também!
Agora, outra coisa importantíssima que todo mundo precisa saber é que não existe veganismo puro e perfeito. Não existe um empresa que te dá uma carteirinha de mais ou menos vegano. A gente vive numa sociedade fincada na visão de que animais vieram ao mundo para nos servir, assim como a natureza. Isso quer dizer que às vezes não dá pra escapar. Você pode precisar de um remédio que foi testado em um animal. Você pode comprar uma cerveja de uma marca que patrocinou um rodeio sem saber. Talvez você não tenha tempo de fazer seu próprio amaciante de roupas e não tenha dinheiro num mês pra comprar aquele da empresa que não testa. Ninguém é menos vegano por isso, entende? E tem muita situação e circunstância onde nem temos respostas ainda. A gente vai conversando, discutindo e aprendendo. 
Lá em casa, por exemplo, temos uma composteira com minhocas. Lucio ganhou da prefeitura num sorteio quando já era vegano e não quis recusar. Eu não gosto dessa ideia e acho que as minhocas precisam sair dessas caixas. Então a gente ainda tá negociando sobre como vamos resolver a questão. Por outro lado, Lucio é muito mais sensível e proativo em resolver e denunciar maus tratos a animais, por exemplo. Muito mais do que eu.  
Outra coisa que eu ainda tô aprendendo é sobre os corantes que são feitos à base de insetos. Bala é uma coisa que nunca tive o hábito de comer, então nem leio nada sobre. E já aconteceu de comer e depois descobrir que tinha a bosta do corante carmin, tirado de um bichinho chamado conchonilha. O que você precisa saber é que nenhum vegano precisa andar com uma tabela de empresas e composição de rótulos de produtos nas mãos 24h por dia. É óbvio que não recomendo chutar o balde e sair comendo qualquer coisa que você “achar” ser vegano. Não é isso, tá? A gente precisa estudar sim se quiser ter um posicionamento coerente com o veganismo, é inevitável, mas não faça disso algo que o impeça de ser vegano, viu?
E é mais ou menos assim que tá rolando comigo. No geral, tem sido infinitas vezes mais simples do que eu imaginava. Eu como coisas básicas no dia a dia, como costumo mostrar no Instagram, e se quero comer algo mais elaborado sem vender um rim, dá pra arrumar um falafel aqui, um yakissoba de legumes melhorzinho ali. O que não dá pra é pra ficar criando expectativa de que o mundo vai veganizar junto contigo. Aí só vai rolar frustração quando sair de casa. Eu já entro em qualquer bar sabendo que só vai ter batata frita. E pronto! Se tiver outras opções, aí já vira uma festa! hahahaha
Pra mim nunca foi tentador cair no conto do veganismo-paga-pau-de-indústria porque ultraprocessados, como maionese e hambúrgueres congelados, nunca fizeram parte da minha vida adulta, nem antes de ser vegana. Eu já via essa galera como nada saudável e super poluidora há muito tempo. Além de que essas versões veganas são caríssimas. 
Fui ler mais sobre veganismo anticapitalista mesmo pra argumentar com as pessoas que idolatram essas opções e me enchem o saco no Instagram. Aliás, parem de me mandar fotos de produtos e escrever: “O que você acha, Juliana?” Eu me sinto como se o Instagram fosse um Tinder de produtos da Nestlé. Credo! 
Exemplo de almoço sem defeitos: alface, arroz, feijão,
quiabo grelhado e almôndegas de berinjela.

Enfim, é isso. Quando a gente descobre que o veganismo tá conectado a outras lutas antiopressões, como o feminismo, a luta antirracismo, contra homofobia, etc, tudo faz mais sentido! E dá muito mais gás de ir correndo arrancar todas as correntes humanas e não-humanas do mundo! Uhul!

E quando a gente entende o conceito de especismo é que cai a ficha de que não basta a galinha não sofrer pra colocar um ovo da mesma forma que a vaca sofre pra dar leite! A questão é deixar os animais em paz, livres para viver por outros propósitos que não sejam servir ao ser humano
É muito louco parar pra pensar no quanto o ser humano transformou tudo ao seu redor em recursos à seu dispor, né? Eu nunca tinha parado pra pensar nisso antes de ser vegana. 

Tirando a parte de comida, eu já era a pessoa natureba, tipo uma versão mais pobre da Bela Gil, que faz seus próprios produtos de limpeza e usa cosméticos naturais há muito tempo. Minha pasta de dente é bicarbonato com óleo de coco, já uso xampu em barra pra lavar o cabelo há eras, não tomo anticoncepcional há 4 anos, e a última vez que tomei um remédio na vida foi quando peguei dengue, em 2013. 
Limpo a casa inteira com o produto maravilhoso da Cristal Muniz, à base de sabão de coco, que também uso pra lavar roupas. Desinfetante, por exemplo, eu faço de álcool de cereais com cascas de tangerina! Aprendi com a Cristal também. 

Desinfetante que uso em casa: é só encher um vidro com cascas de frutas cítricas e
cobrir com álcool de cereais! Deixa curtindo por uns 5 dias e já pode usar. 

De cosméticos, eu uso óleos vegetais ou manteigas (tipo de cupuaçu ou manga) como hidratante, que compro em feiras. Meu perfume é o herbal da @fefapimenta, que é todo naturebinha e tem cheiro de floresta. De maquiagens eu uso basicamente batom e ainda tenho alguns que comprei há 600 anos, dessas marcas comerciais que testam em bichinhos. Vou usar até acabar porque também não adianta ser vegana e querer ser a rainha do consumo. 
Tem gente que não tem saco, nem tempo, nem sabe onde comprar essas coisas naturebas, mas ninguém precisa disso pra ser vegano. Dá pra comprar as coisas industrializadas também. A @floripavegana sempre indica marcas de cosméticos e afins no Instragram dela. Fica a dica.
No entanto, acho válido a gente tentar fazer o exercício de mudar outras coisas junto com o veganismo. A gente pode aproveitar o movimento pra refletir sobre outras coisas que tão conectadas a ele e tentar mudar outros hábitos. Os produtos industrializados são a única opção pra muita gente, é claro. E eu tenho certeza que a pessoa que mora numa das periferias da vida não tem onde comprar manteiga de manga pra passar no corpo. Só que, mesmo assim, a gente não pode perder de vista que qualquer produto industrializado usa muitos recursos naturais: água, energia, combustíveis fósseis, etc. E não adianta salvar os animais se a gente continuar destruindo o planeta onde eles vivem, né?
Cabe a cada um fazer o seu possível e, juntos, lutarmos pra que todo mundo possa ter acesso a alimentos e produtos naturais, mais saudáveis. Na verdade, acho que o maior desafio do veganismo é justamente esse! Sair do plano da “mudança individual” e entender que o movimento só faz sentido se a gente expandir pra esfera estrutural, de romper com o sistema mesmo! 
Pra fechar, tem um negócio que me perguntam SEMPRE, sempre mesmo!, quando eu falo que sou vegana. “Mas, Juliana, você acha realmente que todo mundo pode ser vegano também?” E minha resposta sempre é: ÓBVIO QUE NÃO! Muita gente não pode se dar ao luxo de fazer escolhas. Até parece que vou num povoado super pobre, onde não chove, onde a família precisa dos ovos da galinha pra sobreviver, dizer pra eles pararem de explorar os animais e passarem a comer linhaça! 
Esse veganismo colonizador não me representa, não! A gente precisa entender que MUITA gente não tem escolha. Lembra dos 109 milhões de brasileiros que vivem com R$ 413 por mês? Essa galera não consegue comprar outra coisa que não seja salsicha e suas amigas. Mas isso não é motivo pra você usar de desculpa pra você mesmo. Se pode fazer escolhas, pode ser vegano! 🙂

Oficina de alimentação saudável com alunos de 4 e 5 ano do Ensino Fundamental da escola do
 SESC de Cuiabá, terra do agronegócio. As crianças nunca tinham ouvido falar em veganismo. 

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